Em aulas de
Literatura, eu costumo falar de uma linha filosófica iluminista, idealizada por
Rousseau, chamada "mito do bom-selvagem". Segundo o filósofo, o homem
é naturalmente bom e o que o corrompe é a sociedade, ou seja, em seu estado
primitivo ele é puro e livre dos males morais que nos aflige desde que saímos
da caverna. Esse pensamento é muito utilizado, por exemplo, por progressistas
em geral quando defendem que criminosos agem barbaramente por serem vítimas de
uma sociedade opressora e que não lhes dão oportunidades.
Mas, será que
realmente somos bons se optarmos por uma vida autóctone e fora da civilização?
Será que, sem regras ou freios morais, somos realmente bons, puros e cordiais? Hoje,
por acaso, deparei-me com uma notícia que faz essa teoria cair por terra.
Quatro meninas, entre 13 e 16 anos, torturam uma outra de 14 anos somente
porque esta convidou o ex-namorado de uma delas para sua festa de 15 anos. Foi
algo hediondo, dentre as “delicadezas” que fizeram, as meninas arrancaram o
aparelho dentário da vítima com uma faca. Foi algo brutal e me levou a pensar
até que ponto somos vis, até onde o ser humano é capaz de descer, de perder sua
humanidade. E esse questionamento me levou ao livro O Senhor das Moscas, de William
Golding.
Escrito em 1954,
narra a história de um grupo de crianças entre 6 e 12 anos que naufragam numa
ilha (não especificada) e precisam se organizar até chegar algum socorro. Com
uma narrativa ágil e sem muitos rodeios, o romance mostra o embate entre a
necessidade de manter um traço de civilidade e organização - através da
liderança de Ralph - e a formação de uma sociedade livre e nova, mas também
violenta - através da liderança de Jack, líder dos caçadores - tendo como
mediador e com um pensamento maduro, porém inseguro, Porquinho.
É na dicotomia
entre os dois antagonistas, Ralph e Jack, que pode ser percebido o
questionamento dessa forma de pensar. O grupo está longe de qualquer civilização,
porém tentam, num primeiro instante, um tipo de organização coletiva
simbolizada pela concha. Cada um tem a palavra ao segurar o artefato, ele
exerce a figura simbólica do poder da palavra. Quando a liderança é dada a
Ralph, Jack, tomado de vaidade, se coloca como caçador e começa a questionar
até mesmo a autoridade da concha.
Com o avança da
narrativa, o caçador e seu comandados começam, cada vez mais, a se afastar de
seus traços civilizatórios - no início são apresentados como um coral. A medida
que Jack percebe sua liderança crescendo por conta da carne que ele passa a
trazer através da caça e a tentativa de Ralph de liderá-los num comportamento
disciplinado que, acredita ele, os farão ser resgatados, percebemos como, num
meio hostil e sem amarras morais e/ou legais o ser humano pode se tornar tão
cruel ou mais cruel que qualquer animal selvagem.
Esse comportamento bestializado dos caçadores
pode ser percebido na postura dessas meninas - "No nosso pensamento, nós
ia bater nela e ela ia morrer e nós ia enterrar ela” (palavras delas). Numa sociedade
cada vez mais complacente com delitos de menores e com um código penal cada vez
mais acolhedor a quem comete crimes, pessoas com pouco ou nenhum valor moral
sente-se impelido a fazer o que lhe der prazer e se matar for isso, se houver a
certeza de que sairá impune, não pensará duas vezes e cometerá os atos mais
vis, basta lembrar do caso Champinha.
E quando me refiro a valores morais, refiro
no caso dos adolescentes a permissividade legal, mas também a familiar. Cada vez
mais mimados e com a ideia de que o mundo gira em torno de seus umbigos, esses
proto-delinquentes agem como pequenos tiranos e são capazes de mentir, ferir,
agredir e até matar se suas vontades não forem atendidas ou caso sintam-se
preteridos. São jovens que não reconhecem qualquer voz de comando e não
reconhecem qualquer regra como uma regra de convivência social, agem como Jack,
que se vê livre, sem qualquer adulto e passa a fazer o que lhe vem à mente e
mata a ser contrariado.
Não
estragarei o final, mas vale ressaltar que, diferente do que acreditava Rousseau,
o homem não é naturalmente bom. É possível perceber que, quando os caçadores se
deixam levar por seus instintos mais íntimos e renegam qualquer traço que um
dia os ligou ao mundo convencional, tornam-se assassinos cruéis, capazes de
matar sem qualquer remorso ou piedade e chegam ao extremo de incendiar toda uma
parte da ilha para matar um dos garotos. Da mesma forma que o sentimento de
impunidade faz com que pessoas, independentemente da idade, sejam capazes das
atitudes mais cruéis. Bem, essa é a dica de leitura da semana, O Senhor das
Moscas, que leva a reflexão do que nos torna humano e o que pode nos
desumanizar. Até a semana que vem.
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