Sempre
que converso com amigos ou alunos, costumo dizer que o mais ferrenho direitista
é o ex-esquerdista. Assim como um ex-fumante, o ex-esquerdista defende com
unhas e dentes sua mudança e tenta a todo custo mostrar, a partir do seu
envolvimento com o outro lado, o quanto ele é nefasto. Confesso que sou um
pouco assim. E quando digo que já fui um apreciador da doutrina marxista, com
direito a camisa do Che e todo o resto do pacote, ficam curiosos por saber o
que me fez mudar e digo a verdade: os livros.
Um
desses livros foi o romance A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. Obra
mais conhecida do autor tcheco e já adaptada para o cinema, narra a história de
Tomas, um jovem médico, atraente e com certa respeitabilidade, o que lhe
garante algum conforto na Praga de 1968. Com a Primavera de Praga como pano de
fundo, a narrativa faz uma análise existencialista e filosófica do homem e de
como se relaciona amorosamente quando desprendido de ilusões românticas. Mas não
é a esse lado mais filosófico do texto que quero me ater e sim a algo mais sutil
e relevante e que venho tratando em minhas análises que é o panorama político e
como uma narrativa de ficção pode mudar convicções ideológicas tão
profundamente arraigadas (como no meu caso).
Kundera
foi crítico ferrenho da Cortina de Ferro durante a Guerra Fria, muitos livros
seus abordam como era a vida na antiga Tchecoslováquia no período em que o país
fez parte do bloco comunista e nesse caso ele foi bem mordaz com sua reprovação
do regime. Na trama, o protagonista tem um artigo seu publicado num jornal de
grande circulação que logo causa desconforto nas autoridades do país. Lembremos
que parte da narrativa acontece durante a Primavera de Praga e seu desenrolar
vão pelos anos seguintes. Como seu artigo (como foi dito antes) causa
indignação nos poderosos locais, é pedido a ele que se retrate publicamente com
outro texto de própria autoria. Ao se recusar, tem sua vida destruída pela
máquina do Estado. Tomas perde tudo: prestígio, carreira e termina sua vida
como um modesto fazendeiro no interior do país. O regime o engole e cospe
apenas um resto de homem.
A
crítica que ele faz ao governo é bem emblemática, para dizer a verdade. Ao analisar
a obra Édipo Rei no seu texto, o jovem médico compara os governantes que
permitiram a entrada dos soviéticos, levando seu povo ao sofrimento, ao rei da
peça. Contudo, ele aponta a diferença moral entre ambos – e é aí que sua vida é
destruída – enquanto Édipo, ao saber de seu erro, que leva seu povo a ser
assolado por pragas (na peça, o crime dele foi matar o pai e desposar a mãe,
como fora vaticinado no seu nascimento), fura os próprios olhos como
autopunição pelo mal que infligiu, os poderosos de seu país fingem-se de cegos,
ignorando o sofrimento causado à população e não praticam esse auto flagelo,
como o rei tebano, não abrem mão de algo precioso – seus cargos – pelo bem da
nação.
Essa
obra como um todo, mostrou-me um lado do socialismo que até então eu não
conhecia. Já havia lido minhas primeiras distopias e comecei a entender o que
estava acontecendo com mais clareza. Depois vieram outras narrativas, porém, o
impacto dessa no momento em que li foi um divisor de águas. E esse livro seria
mais um na lista dos que me marcaram se, repetidas vezes, ao longo dos últimos
10 anos (ou um pouco mais), não retornasse ao artigo de Tomas e ao holocausto
de Édipo a cada nova lida nas notícias, a cada vez que vejo como agem os
líderes de esquerda e seus intelectuais opereta que tendem a negar a verdade, mesmo
que isso custe a integridade moral ou mesmo física de toda a população.
Um
bom exemplo disso é a cobertura da imprensa durante todo esse ano. e quando me
refiro à imprensa, falo da oficial, dos grandes veículos de comunicação,
aquelas que entram no lar de milhões de brasileiros e é composta
majoritariamente de jornalistas tendenciosos e que em grande parte do tempo não
divulgam a verdade pura, simples e imparcialmente, ficam praticando um
jornalismo tendencioso e que beira à torcida organizada, com análises
imparciais repletas de paixões e com a neutralidade de um cabo eleitoral muito
bem pago.
Todos
acompanharam seus vexames nos últimos tempos, seus vaticínios perfeitos onde
previram o fim da Operação Lava Jato, a não aprovação do Impeachment e depois
absolvição de Dilma, a escapada de Eduardo Cunha e no fim as torcidas e
campanhas eleitorais veladas ao candidato do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo e
da candidata à presidência americana Hillary Clinton. E nem estou mencionando a
tentativa de assassinato de reputações com seus opositores, respectivamente:
Marcelo Crivella e Donald Trump.
E
o que faz com que eu pense em Édipo e seu martírio é justamente o comportamento
da imprensa brasileira (e americana também) em não fazer uma auto crítica, é
não olhar para os sucessivos erros e admitir que falhou fragorosamente, é não
reconhecer e, simbolicamente, sacrificar a reputação de imparcialidade que
tanto ostenta sem na verdade cumprir – numa postura tão hipócrita quanto
daqueles que finge apontar – e retirar-se pelo bem maior dos que leem ou ouvem
seus arroubos de oráculos modernos. Ela se arvora da alcunha de Quarto Poder e
age de forma ditatorial escolhendo aqueles que serão ungidos no altar de suas prensas
sem pensar que seus eleitos podem destruir o pouco que os mais sofridos
possuem. E não se desculpam. E ao perceberem que suas mentiras foram expostas e
estão sujeitos ao escárnio público, tentam distorcer a verdade, inflamam os
mais ingênuos ou mal-intencionados e tentam a todo custo distorcer a realidade
que está cada vez mais aparente, graças principalmente à internet e àqueles que
buscam a verdade, não importa onde esteja.
Assim como os políticos, a imprensa oficial também é
amoral. Assim como eles, precisa fazer um mea culpa, reconhecer que falhou e
abrir mão de sua reputação, como Édipo abriu de seus olhos. A imprensa precisa
se dar em holocausto às divindades da verdade e da justiça, ficar ao lado
daqueles que os mantém e que estão fartos de suas inverdades: o leitor, o
espectador. Kundera soube como poucos nos mostrar essa verdade e como poucos
apontar a amoralidade daqueles que deveriam zelar por nós. Muitos livros nos
entretêm e muitos nos mudam, abrem nossos olhos, seja de forma leve ou de forma
intensa e nesse caso, Kundera deu-me um tapa na cara para que eu visse a
verdade e é o que busco desde então. Até a próxima.
Comentários
Postar um comentário