Um tipo de narrativa que
sempre me agradou muito é o realismo fantástico. É um enredo que me leva à
origem do meu gosto literário e que foi precursor de tudo que sou hoje: as
histórias em quadrinhos. Todo esse universo de seres poderosos interagindo com
os homens comuns, contado de forma a parecer natural e aceitável um homem poder
voar ou lançar raios dos olhos ou das mãos é inventivo e excitante. Porém,
nunca entendi o porquê de autores dessa lavra não migrarem para a literatura
formal, haja vista eles terem bastante a mostrar. Mas nem todos ficaram presos
ao universo das HQs, um, dentre todos, transitou por esses dois universos de
forma brilhante. Seu nome? Neil Gaiman.
Autor de obras premiadas no
universo dos quadrinhos – o mais famoso, Sandman, conta a história do senhor do
mundo dos sonhos e seus irmãos, os Perpétuos – ele também enveredou para a
literatura adulta trazendo narrativas que nos colocam entre esse mundo mágico
de criaturas míticas e o real de forma a parecer natural a fusão dessas duas
realidades. Alguns dos seus romances, inclusive já foram transpostas para o
cinema (Stardust e Coraline) e agora, mais uma obra ganhará as telas, na forma
de série dessa vez, o livro Deuses Americanos.
Na trama, o ex-detento Shadows
sai da prisão após a morte de sua namorada e de seu melhor amigo. Ainda atordoado
ao descobrir que eram amantes, ele volta para sua cidade a fim de tratar do
funeral dela. E é nesse voo que sua vida muda ao aceitar o emprego de “faz tudo”
do misterioso Mr. Wednesday (uma das identidades de Odin), já que ele se vê, de
repente, envolvido numa guerra entre os deuses mitológicos antigos e os novos
deuses.
Shadows então é levado por
Wednesday por todo os EUA a procura dos deuses antigos trazidos pelos primeiros
colonos para formarem com ele um exército na tentativa de vencer os deuses
atuais (tecnologia, televisão, dinheiro) resgatando o culto aos mais velhos. Como
esses seres primordiais estão esquecidos, eles passam a viver nas periferias,
margeando estadas secundárias, morando em bairros afastados ou em cidades
esquecidas tendo que sobreviver trabalhando como mortais normais e envelhecendo
como nós.
Não contarei mais para não
estragar a surpresa, quero na verdade falar do que trata o livro como pano de
fundo, que é a tradição. O livro fala do abandono das tradições antigas e a
valorização de coisas efêmeras do mundo moderno. Por trás de uma realidade
fantástica onde homens e deuses convivem, onde o mundo real é separado do mundo
místico por um pequeno véu e esses dois mundos se cruzam a todo instante, há
uma narrativa que diz: “olha, estamos abandonando o que fez de nós o que nós
somos e estamos fadados a desaparecer nesse mundo novo e barulhento”.
Na narrativa, o que faz
esses seres místicos, tão poderosos no passado, virarem velhos decrépitos e que
lutam a todo custo por sua sobrevivência é justamente o abandono de suas
crenças. Tomando por base deuses de mitologias pré-cristã, o autor mostra o que
acontece quando abandonamos nosso passado. A obra nos leva a pensar em como
abandonamos por novidades, muitas vezes superficiais, aquilo que fez de nós o
que somos. Ao mostrar como esses deuses chegaram a América junto com seus
colonizadores e como eles continuaram sendo cultuados no início, ele conta como
foi a formação de um povo nascido da miscigenação. Ao mostrar o que resta deles
após séculos de colonização e o esquecimento desses anos primordiais por seus
descendentes, mostra o risco de se destruir as raízes que fazem um país ser o
que é.
Numa época em que o
conservadorismo e a valorização das tradições começam a tomar corpo novamente,
numa época em que o multiculturalismo é questionado na Europa e o discurso
conservador de Trump causa arrepios nos modernosos de Hollywood e da imprensa
local, esse livro pode ser visto como um manifesto (a seu modo) do renascer das
tradições, tanto lá fora quanto aqui.
O romance é uma obra de realismo
fantástico, ambientada num mundo irreal, e esse é o papel da literatura: a
partir do fantástico ou maravilhoso nos fazer perceber o mundo real a nossa
volta. Através de uma fábula que mistura mitologia e realidade, é possível
analisar nossos tempos, tempos esses que exigem um posicionamento mais firme
daqueles que defendem suas tradições e faz de nós o que somos e tomando
emprestado o pensamento de Roger Scruton, esse livro mostra como é difícil
construir um legado, mas muito fácil destruí-lo. Até a próxima.
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