E lá se vão 6 anos desde o último texto aqui nessas paragens. Será que ainda há um hipotético leitor? Será que, depois de uma pandemia, depois tantos anos e tantas coisas ocorridas, ainda há o que indicar sobre literatura?
Lá atrás, quando esse blog surgiu, a ideia era indicar livros que me encantaram, mostrar minha percepção quanto ao que havia lido e, claro, como ele me tocou. bem, de lá para cá, muita coisa foi lida e uma torrente de ideias passou a borbulhar em minha cabeça e quero muito compartilhar com os (será?) ainda existentes leitores e, por que não, novos.
Por hora, essa volta será sazonal, os textos, espero, serão mais elaborados e dependendo do que acharem, quem sabe não retornarei com mais dicas, com companhia e, que sabe, em outro endereço, num canto maior? Agora, sem mais delongas, vamos ao texto da semana, ou mês, ou semestre, sei lá...
O Brasil tem longa tradição em produzir grandes artífices da palavra, bem como a de falar das dores de amor. Se até à primeira metade do século XX esse papel cabia aos poetas, foi com Vinícius de Moraes que a fronteira entre as palavras escrita e cantada se cruzaram e viraram praticamente uma só.
E, por ter essa importância nas duas pontas desse estudo, que optei por analisar a polifonia de um de seus mais conhecidos sonetos, O Soneto de Separação, que ganha novas vozes a partir da sua transformação em canção por seu amigo e parceiro Tom Jobim, interpretada por Elis Regina no disco Elis & Tom, de 1974.
Escrito em 1938, quando estava a caminho da Inglaterra para estudar, e publicado no livro O Encontro do Cotidiano, publicado em 1946, tem como temática o fim de um relacionamento amoroso. Tendo como única voz a do eu lírico, o soneto retrata a dor da percepção repentina de que o casamento acabou:
[1]De repente do riso, fez-se o pranto
Silencioso e branco, como a bruma
E das bocas unidas, fez-se a espuma
E das mãos espalmadas, fez-se o espanto
A repetição no início de cada estrofe da locução adverbial de repente, bem como nos versos que iniciam e terminam a terceira e última estrofes, respectivamente (“de repente, não mais que de repente”), marcam a surpresa do eu lírico em não ter percebido a proximidade do fim.
Nesse caso, há aí um parceiro indiferente ao que está ao seu redor tendo o rompimento um sentimento de dor mais intenso do que deveria. Somado a isso, essa voz única do texto tenta exprimir o sentimento de ruptura através de antíteses que servem para ilustrar o quão distante os parceiros agora estão um do outro, como pode ser visto já no primeiro verso (riso/ pranto) ou em “Fez-se do amigo próximo, distante” (próximo/ distante).
Quanto à estrutura do texto, o autor seguiu o modelo tradicional de soneto com versos decassílabos e quatro estrofes. Vale ressaltar que quando o texto foi escrito, estávamos nos primeiros anos do Modernismo e Vinícius – assim como outros de sua geração – também experimentava novas possibilidades textuais em sua poesia já nos seus primeiros textos. Porém, na contramão do que acontecia na poesia, ele optou por um texto clássico.
Sendo um de seus principais poemas e tendo Moraes uma carreira de compositor anterior a de poeta (mesmo que não tenha musicado esse texto em particular), não é de se espantar que esse soneto fosse escolhido por seu amigo e parceiro Tom Jobim no disco que dividiria com Elis Regina em 1974[2].
Álbum lançado para celebrar os dez anos de carreira da cantora e com o maestro morando nos EUA, o disco pretendia ser também uma maneira de trazer o nome de Jobim para um público mais jovem através da popularidade e carisma de Elis.
Mas, antes de analisar a obra, vale definir dois conceitos para melhor diferenciar as duas leituras e entender como a transposição para outra linguagem artística modifica também as vozes do texto, mesmo que mantenha o sentido. O primeiro conceito a ser definido é a diferença (ou aproximação) da poesia e da canção. Segundo Ruth Finnegan[3], a canção é o que está mais próximo da natureza humana no que diz respeito à oralidade. A palavra cantada está presente desde a origem das civilizações e perpassa toda a trajetória humana com suas danças, cantos tribais, festivos e até mesmo na declamação de poesias (orais) usando dessa musicalidade para a narração de epopeias, cantigas medievais e cantos de lamentos, por exemplo. Portanto, não é surpresa a assimilação de poesias por cancioneiros e artista populares dada a proximidade de estruturas tendo a performance em cada texto o seu diferencial.
O segundo conceito é o do cancionista e do compositor-cancionista defendido por Luíz Tatit[4]. Para o pesquisador, o cancionista é aquele que equilibra o texto com a musicalidade, é quem apara os excessos de opulência da música dando uma cadência quase próxima da fala cotidiana ao canto. E nessa seara, ele coloca Jobim como um compositor-cancionista[5], que é aquele que, diferentemente da maioria dos compositores-cancionistas brasileiros, possui conhecimento de linguagem musical brindando-nos com uma sofisticação minimalista, oriunda do cool jazz e do samba, pautada na ambientação da música e na extrema redução dos excessos dos acordes, marca basilar da Bossa-nova.
E sua versão para o soneto de 1974 tem essa característica minimalista somada a uma ambientação orquestrada que traz uma tensão passional[6] para a canção. Com uma marcação instrumental que mescla a marcação de notas encadeadamente separadas no início e a orquestração melancólica a seguir, cria um tom emocional que irá dividir o texto em duas vozes representando os dois partícipes da relação no momento do rompimento. A voz masculina será marcada pelo encadeamento das notas soltas dando o tom de surpresa do companheiro, isso é feito com a marcação das sílabas tônicas dos versos pelo piano isolado.
A entrada da orquestra vai marcar a tristeza de ambos através de uma melodia com a forte presença de violinos e notas alongadas nas vogais desenhando a tensão passional ilustrada por Tatit. Essa parte melódica aparece ainda na fala do companheiro insinuando a mudança do espanto inicial para um sentimento de dor. Ela segue na voz da companheira que leva sua entonação para um canto mais triste e desenganado fazendo com que a canção tenha duas perspectivas bem claras do processo.
Isso fica evidente com a troca de cantores, na primeira parte a voz masculina de Jobim e, em seguida, entrando a voz de Elis Regina marcando a distinção das vozes tanto com o arranjo quanto com as interpretações.
É importante ressaltar – retomando a fala de Ruth Finnegan – é a diferença performática de ambas as leituras que vai mostrar o diferencial entre os texto. Em ambos os casos, poesia e canção, o tema é um só: o fim de um relacionamento amoroso. Entretanto, ao observarmos a leitura fria do texto impresso ou vê-lo sendo declamado, percebemos que aí ali o sentimento de uma só pessoa da relação, o eu lírico ali é um só e coloca o seu sentimento de, primeiramente espanto e depois de tristeza numa sequência de emoções (como foi dito anteriormente),
Diferentemente da leitura que pode ser feita ao apreciar a canção. Ao intercalar as vozes e o timbre da base instrumental, cria-se ali uma duplicidade do eu enunciador onde encontramos um parceiro que é surpreendido com o fim transformando essa tristeza em dor e a outra voz de alguém que já percebeu o fim e transborda toda a sua tristeza no momento do rompimento.
Por isso a polifonia do soneto, porque, a partir da fonte que se busca para conhecê-lo teremos, ou uma única voz – no texto escrito – ou teremos duas vozes distintas num único referente – no texto cantado. E essa, talvez, seja a beleza e grandiosidade desse soneto, que aliás, foi escrito antes do primeiro casamento do autor, o que mostra sua sensibilidade e entendimento da alma humana e suas dores.
BIBLIOGRAFIA:
FINNEGAN, Ruth. Discurso de abertura do II Encontro de estudos da Palavra Cantada. UFRJ. 2006.
MORAES, Vinícius. POESIA COMPLETA E PROSA: VOLUME ÚNICO. Nova Aguilar. RJ. 1976.
TATIT, Luiz. O CANCIONISTA: COMPOSIÇÃO DE CANÇÕES NO BRASIL. EDUSP. 1996.
[1] MORAES, Vinícius. POESIA COMPLETA E PROSA: VOLUME ÚNICO. Nova Aguilar. RJ. 1976. Pág.: 226.
[2] JOBIM E REGINA, Tom e Elis. ELIS &TOM. Phillips. 1973. Lado B, faixa 5.
[3] Discurso de abertura do II Encontro de estudos da Palavra Cantada, na UFRJ em 2006.
[4] O CANCIONISTA: COMPOSIÇÃO DE CANÇÕES NO BRASIL. EDUSP. 1996
[5] Idem, página 160.
[6] Idem, página 22.
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