Por: Kleryston Negreiros
Estamos nos anos 1930 e o mundo que
conhecemos entrou em colapso: saímos de uma guerra que devastou a Europa,
sobrevivemos a uma pandemia e, quando tudo parecia se reorganizar, o mundo
entra numa grave recessão econômica e se encaminha para regimes totalitários em
vários países trazendo de volta o fantasma da guerra. Nesse contexto, qual o
papel da narrativa? Como escrever sobre a realidade quando o mundo que se
conhece entrou em declínio?
Pois é nesse cenário que são escritas as
obras Luz em agosto (1932), de William Faulkner, e Fronteira (1935), de
Cornélio Penna. Rompendo com estruturas narrativas e trazendo aspectos
psicológicos que expressam o descontentamento e traumas com o mundo de então,
ambos os autores criam uma comunicação única entre personagens, ambientes e
construção da trama ligando o interior de Minas ao Tennesse a partir de suas
formas de religiosidade opressora, de um passado assombroso que insiste em
ficar no presente e uma atmosfera sufocante que asfixia o leitor.
E é isto que pretendo mostrar, saudoso
leitor desse humilde escriba, como as inovações estéticas na ficção dos anos
1930 puderam criar obras que iam profundamente na alma humana e trazia de forma
mais intimista a realidade de um mundo em transformação. Com um realismo bruto,
sem distrações, ambos os autores, Cornélio e Faulkner, construíram tramas que iam
muito além de um simples retrato do cotidiano do homem comum, mais que isso,
mostravam como essa vida familiar, simplória e cotidiana poderia esconder tragédias
dignas dos grande épicos narrativos. Mas, sem mais me alongar, vamos entender
cada obra separadamente e depois vamos ver o que as ligam.
Fronteira – O limiar da realidade e do
assombro
Com atmosfera sufocante, o livro transita
na fronteira entre o real e o fantasmagórico criando um efeito de camadas que
vai prendendo o leitor nesse clima rarefeito e fugidio na tentativa de
descobrir o desenlace da trama, que nunca deslancha e nem conclui desenrolando-se
no ritmo do sonho.
É um texto que trata de segredos
familiares escondidos pela rotina do casarão caminhando pela fronteira –
tomando a ideia do título e que perpassa pela escrita de Penna de forma
minuciosa – entre o real e o aberrante, o mundo diurno e o onírico, entre a
vida e a morte.
Vale salientar que esse conceito
fronteiriço da obra é refletido também em sua estrutura inovadora e cheia de
experimentalismos. Utilizando-se de um fluxo de consciência intenso, o autor
intercala duas vozes narrativas o que cria a primeira ambiguidade e indefinição
(traço marcante do livro): há um primeiro narrador, esse em terceira pessoa,
onisciente e que sabe sobre tudo o que vai acontecer, mas que dá voz a um outro
narrador que está inserido na trama, porém, não é identificado em nenhum
momento, aliás, nem mesmo se é um narrador ou narradora, ou qual relação possui
com os demais personagens e de que forma tem intimidade com esses e a casa.
Ainda sobre o fluxo de consciência, a
trama não desenrola de forma linear, sua cronologia é incerta, há saltos no
tempo indefinidos e mesmo a época em que a história acontece é confusa e
imprecisa, só há um marcador de tempo que é apresentado de forma sutil quando
indica que tudo acontece durante o governo de Floriano Peixoto.
A propósito, a subversão, dita
anteriormente, se dá com a não sequência cronológica dos fatos. Sendo uma
tipologia textual pautada pela cronicidade, Penna, ao não datar os capítulos,
deixar obscurecida a identidade do autor(a) do diário e, principalmente, não
seguir uma sequência cronológica dos fatos, optando pelo fluxo de consciência e
ida e vindas no passado, torna essa proposta de escrita inovadora não só no que
diz respeito ao que se convenciona como romance, como também, ao que se entende
por diário pessoal.
Essas inovações na estrutura narrativa e
abordagem de questões psicológicas e intimistas estavam presentes na literatura
dos anos 1930 aqui no Brasil e no exterior. Isso pode ser percebido na outra
obra analisada nesse artigo, Luz em agosto, de William Faulkner, publicado em
1932 e que será abordado a seguir.
Luz em agosto – A escuridão da alma
sulista
Ambientado em Jefferson, cidade fictícia
do Mississipi, no sul dos EUA, durante o período da Grande Depressão e Lei Seca,
o livro conta a saga de Lena Grove e Joe Christmas. Personagens que não se
cruzam na trama, porém, com as vidas interligadas a partir de Joe Brown (ou Lucas
Burch), a obra mostra a miséria humana e econômica da região e toda a sua
hipocrisia religiosa.
A trama se desenrola no período de uma
semana, mas ao usar o recurso de fluxo de consciência e flashbacks, vão sendo
apresentadas as tramas dos narradores-personagens. Esse recurso polifônico é
utilizado pelo autor – uma inovação na escrita – para contar as tramas
paralelas e nortear o leitor em toda a saga dessas criaturas solitárias e
perdidas numa época de pobreza de abandono. E ao intercalar as vozes que contam
a história, o suspense acaba por se manter vivo até o fim da trama prendendo o
leitor num ambiente sufocante e numa narrativa que asfixia pelo peso de um
passado que pesa sobre os ombros de cada personagem.
A escolha da ambientação, uma cidade
pequena, no interior dos EUA, reforça essa sensação de sufocamento. A região é
habitada por pessoas solitárias, com apenas uma pessoa rica em todo o condado,
a miséria financeira e moral vai se espalhando pelas casas e vidas dos que ali
residem. Essa decadência cria uma sensação de desespero e falta de horizonte,
que somada ao calor da época do ano, cria um efeito mormaço de peso durante a
leitura da obra.
Além de Lena, a narrativa conta a
tragédia de Joe Christmas. Homem solitário, funcionário da serralheria local e
contrabandista, é guiado por uma série de infortúnios até seu martírio no fim
da semana cuja narrativa se desenvolve. Homem branco, porém mestiço, essa
ambiguidade racial vai ditar as suas escolhas durante toda a sua vida,
Christmas vai se colocar em holocausto por não se aceitar como é, e, no fim,
será acusado pela morte de sua amante, a única pessoa realmente rica na região,
oferecendo-se como mártir da própria história.
O livro ainda traz alguns outros
personagens que possuem vozes significativas e reforçam essa ideia da opressão
do passado e da opressão religiosa sobre a vida das personagens. Um deles é
Byron Bunch, jovem que ajuda Lena na busca pelo pai de seu filho, porém,
manipulando as informações e até o momento do encontro entre os pais da criança
que irá nascer por ter se apaixonado por ela. Ele busca a todo instante agir de
forma correta, mas era moralmente ao manipular as ações para retardar o
encontro de Lena com Brown.
Outro personagem importante para a trama
e que reflete essa decadência citada anteriormente é o ex-reverendo Gail
Hightower. Líder religioso local no passado, é expulso da congregação e passar
a viver de forma solitária após ter sua vida pessoal exposta. Durante seu
período como reverendo, sua esposa passa a traí-lo e é encontrada morta num
motel em Menphis, expondo o pastor e, consequentemente, levando à sua expulsão.
Ele se torna o conselheiro de Bunch e acaba envolvido na trama de Brown e
Christmas.
Cornélio e Faulkner – A fronteira entre
Minas e Mississipi
Agora, para mostrar como essas obras
foram inovadoras e como se comunicam, quero abordar três aspectos específicos
que justificam o quão impactante foram para mim a leitura desses romances e por
que são duas dicas incríveis para você, estimado leitor hipotético, mergulhar
na riquíssima literatura dos anos 1930. Os três pontos comuns observados foram
a estrutura dos textos, a semelhança em algum aspecto das personagens e como a
ambientação foi importante para dar o clima dos livros.
A estrutura
Uma característica marcante na
literatura do início do século XX foi o desprendimento com as estruturas
formais da narrativa. A partir da década de 1920, o que se viu foi a
transposição do que pode ser considerada a última fronteira narrativa, a do
narrador. Se no Realismo o cotidiano e a vida privada burguesa passa ser o
centro da construção da ficção, com suas longas descrições e tentativa de
retratar fielmente os ambientes burgueses – e deixando de lado o teor
aventuresco dos romances dos séculos anteriores – a partir desse período, o que
temos é a narrativa sendo contada de forma externa, mas também de forma
interna, o leitor passa a olhar não só o que vê o narrador, como também o que
ele pensa. E é esse o primeiro fator de comunicação entre Cornélio Penna e
Faulkner.
Em ambas as narrativas, os autores
exploram o fluxo de consciência. Enquanto em Fronteira, sentimos o peso da casa
sobre as emoções do narrador(a) do diário, sentimos sua angústia asfixiante por
retornar a um lugar que lhe oprime e cuja topografia estreita qualquer
possibilidade de vislumbrar o horizonte e trazendo camadas cada vez mais
sufocantes, indo da cidade para a casa e da casa para o quarto.
Em Faulkner, esse fluxo é usado para
marcar a polifonia da trama e contar paralelamente ao tempo cronológico, como
as ações das personagens as levaram àquela situação que se encontram no momento
da história. E não apenas pontuar seus segredos, mas, acima de tudo, indicar
que esse passado é uma sombra que os mantém num estado de constante solidão e
desamparo, presos a fantasmas que os levam à autodestruição.
Outro ponto estrutural que aproximam os
dois livros é sua não linearidade temporal. Ao adotarem o recurso de fluxo de
consciência, os autores apostam numa construção temporal mais psicológica, cada
um a seu modo: em Fronteira, a subversão da escrita de diário não marcando a
sequência cronológica criando, assim, um fluxo de texto que leva o leitor para
frente e para trás no tempo causando uma sensação de vertigem, não tendo onde
se amparar, o que leva a um mergulho nos sentimentos tortuosos dessa voz
misteriosa que escreve o diário.
Já Faulkner, explora ao máximo os
flashbacks, porém, sem indicar o momento em que ele ocorrerá. A trama vai
seguindo um fluxo onde passado e presente aparecem de forma simultânea levando
o leitor a entende quase em tempo real o que levou determinada personagem a
agir como agiu na trama.
Enquanto um autor provoca vertigens no
leitor, o outro explora as múltiplas vozes, inserindo, inclusive, personagens secundárias
e sem qualquer relação com a trama que contam os fatos como observadores
externos do que ocorreu.
Somado a tudo isso, ambos os autores vão
dando um ritmo de lentidão às suas narrativas. Esse recurso serve para
alimentar o suspense até o último momento criando uma atmosfera de peso
emocional até mesmo em que lê as obras. O que vai diferenciar cada uma delas é
o fato de que no texto do brasileiro, não há a solução do mistério. Nesse caso,
o realismo de Penna se revela na maneira como os segredos da família de Maria
Santa são guardados até mesmo do leitor, como acontece no mundo real.
Diferentemente de Faulkner, que dá
desfechos a suas personagens, porém sem entregar tudo apressadamente. Mesmo
quando morrem, há um suspense até que toda a tragédia se revele. As múltiplas
vozes que contam a história permitem que o ritmo seja cadenciado para que tudo venha
à luz no momento certo. Ou seja, o tempo, nos dois romances, é fugidio e clímax
tem um desfecho místico/religioso já que ambas as narrativas têm como pano de
fundo a Semana Santa, seja de forma concreta (Fronteira), seja de forma
metafórica (Luz em agosto).
As personagens
A opressão religiosa é fortemente
marcada nas duas obras. Em Fronteira, há um catolicismo místico e sincrético e
isso é representado nas figuras de Maria Santa e Tia Emiliana. Uma, aceita seu
destino, a outra, controladora, é a grande responsável pelo fim trágico da
primeira.
Já em Luz em agosto, a opressão
religiosa se dá através do puritanismo protestante do sul dos EUA. A
representação desse viés estão nas figuras de Joe Christmas, Jovem mestiço de
pele clara e sangue negro, é assombrado pela presença do seu pai adotivo, McEachan,
homem de rigidez religiosa e frieza brutal, a quem Joe mata para tentar se
livrar da sua opressão.
São essas personagens que servem de elo
entre as duas obras e que serve para marcar esse peso da religiosidade
distorcida em ambas as tramas. Nas figuras de Maria Santa e Joe Christmas (oprimidos
pela fé cega de seus respectivos parentes e com um culpa a carregar que será
espiada com o martírio) e Tia Emiliana e McEachern (opressores religiosos que distorcem
os ensinamentos religiosos levando seus entes a um ambiente místico sombrio ou
de servidão e temor).
Em relação ao primeiro par, o que se vê
é que ambos carregam o peso de religiosidade rígida, usada para alimentar
culpas e o peso do passado a partir de mortes que os assombram no decorrer da vida
e que os levam a buscar a redenção na morte como mártires.
No caso de Maria Santa, essa resignação
aparece em sua apatia e aceitação de seu destino, traçado por sua Tia Emiliana.
Ela carrega o peso da morte de seu noivo, que nunca é revelada, mas que atormenta
como uma sombra a memória de Maria. O peso da dor e do segredo a leva a se
entregar em martírio na Semana Santa acreditando que fará um milagre: para os moradores
da cidade, sua ressureição; para ela, sua redenção.
Assim como Maria Santa, Joe Christmas
carrega o peso de uma criação de rigor religioso. Criança abandonada ainda
recém-nascida, é adotada por McEachern, fundamentalista religioso e homem rude.
É nesse ambiente, de autoritarismo, silêncio monástico, servidão opressora e
culpa constante que Joe cresce. É a morte de seu pai adotivo, assassinado pelo
próprio Christmas, que vai assombrar o jovem pelos próximos anos. A essa culpa,
será adicionada a da morte de Joana Burden, mulher com quem ele se relaciona
sexualmente. A não aceitação de sua condição de mestiço e o peso dos crimes o
levam a se entregar em holocausto e morrer como um mártir para aplacar a ira de
uma cidade racista e a culpa por uma vida errante e de crimes.
Do outro lado, aparecem as figuras de
Tia Emiliana e McEachern. Tia Emiliana é a força por trás da tragédia de Maria
Santa em Fronteira. Mulher rica e cheia de segredos, manipula a todos para
conseguir o que quer. O seu fundamentalismo religioso cheio de misticismo e
sincretismo leva Maria a aceitar o seu destino sem questionar. E ela quem
mantém o ambiente opressor cheio de culpas e ressentimentos que vai consumir a
alma da jovem e que a leva ao morte.
Já em Luz em agosto, surge McEachern,
homem rude, religioso e que adota Joe Christmas ainda na infância. Ele é a
figura opressora que assombra o passado do jovem. Com seu moralismo puritano e
sua obsessão moral, persegue Christma o criando em um ambiente violento e
asfixiante. McEachern alimenta a culpa e a repulsa de Christmas com
religiosidade, que o leva a assassinar sua amante. E a morte desse pai adotivo
coloca Joe numa jornada de fuga que o leva ao seu martírio. Semelhante à Maria
Santa, há a culpa e um crime que o assombra, porém, diferentemente dela, ele
não se torna apático. Quanto ao pai adotivo, ele toma a mesma postura
repressora e hipócrita, com o mesmo olhar distorcido da fé para impor medo e
superstição ao quem lhe é inferior.
O ambiente
Para dar sentido a esses sentimentos já
ilustrados anteriormente, os autores apostaram numa ambientação decadente e
sufocante. Cada um a seu modo opta por retratar regiões que conhecem bem e usam
esse conhecimento para ambientar o leitor de forma mais intimista.
A escolha por retratar cidades
decadentes é um primeiro ponto de contato entre as obras. A cidade onde ocorre
a trama de Fronteira não é definida e nem o ano em que ocorre, apenas por
algumas informações, supõe-se ser no interior de Minas Gerais e no final do
século XIX. A cidade está em decadência desde o fim do ciclo do ouro na região,
é empobrecida e a única pessoa com recursos é a Tia Emiliana.
E é esse recurso, a criação de ambientes
lúgubres, insalubres e com o ar contaminado, que os autores reproduzem no
leitor a sensação do peso do passado, do assombro com os fantasmas e o
desconforto com a própria existência. Ao criar uma espiral de ambientes com
pouca luminosidade, com o ar úmido do calor e lugares parados no tempo,
refletindo o a presença imperiosa do passado, eles colocam o leitor não só
dentro do pensamento das personagens como fazem com que sintam também o que
está sendo retratado nas obras.
Faulkner foi um dos mais importantes e
influentes escritores do século XX, Cornélio Penna, apesar de pouco lembrado,
foi um dos mais inovadores escritores da geração de 1930 da literatura
brasileira. Ambos buscaram reproduzir as tensões psicológicas das suas regiões,
buscaram transmitir através de seus livros o peso do fundamentalismo religioso,
o terror com que o passado nos assombra e, principalmente, como o mais banal e
cotidiano da vida do homem comum pode ser carregado de significado e sofrimento,
mesmo que tudo pareça imutável como a decoração de casas antigas ou a rotina de
uma pequena cidade.
Suas obras foram significativas para o
que veio a seguir não só na literatura brasileira, como na mundial,
influenciaram grandes autores e deixaram seu legado com suas inovações
narrativas, suas construções cheias corredores labirínticos e eternizaram seus
nomes como dois gigantes da escrita.
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